Outlast, dez anos depois: sobre infância e outros horrores

Sobreviva enquanto pode.

Quando tinha quatro ou cinco anos de idade, eu adorava assistir a filmes de terror. Até o dia em que um deles arruinou minha cabeça infante. Sozinho no escuro, à noite, tive certeza de que um boneco ruivo sairia de baixo da cama para mergulhar uma faca no meu olho esquerdo. Gritei para mamãe e mamãe veio correndo. Pedi a ela que acendesse a luz. O problema é que o quarto dela ficava bem em frente ao meu e, ao contrário de mim, mamãe estava morrendo de sono. Ela concordou em acender a luz, desde que a porta do meu quarto ficasse fechada. Tudo bem, pensei. Qualquer coisa é melhor que a escuridão. Mas quando mamãe voltou para a cama, fechando a porta atrás de si, outro tipo de desespero invadiu meu coração: agora eu estava isolado, preso entre quatro paredes que, só eu sabia, em breve se tornariam palco de um homicídio sangrento.

Minutos de tensão e músculos retesados depois, gritei novamente e novamente mamãe veio correndo, já irritada com o moleque que não a deixava dormir. Voz trêmula, pedi a ela que por favor deixasse a luz acesa, mas que por favor mantivesse a porta aberta. Não teve jeito, eu precisava escolher: ou era a luz acesa, ou era a porta aberta – a escolha de uma vida. A resposta entalou em um choro sofrido na minha garganta. Sob ameaças maternas que eram piores que ameaças de morte, por fim escolhi a porta aberta (qualquer coisa era melhor que o isolamento), e então a luz voltou a se apagar. À medida que os passos de mamãe se afastavam sonolentos pelo corredor, um coração voltou a bater forte na escuridão do meu peito. Enrolado em um cobertorzinho do Mickey Mouse, último refúgio possível naquele momento de horror, temi que tivesse feito a escolha errada, e pelo resto da noite esperei a morte.

Essa foi apenas uma das muitas recordações de infância que me assaltaram enquanto jogava Outlast, gerador de ansiedade produzido pela Red Barrels. Contra todas as probabilidades, sobrevivi àquela noite em meu quarto, e a todas as outras desde então. E sobreviver é literalmente o nome do jogo em Outlast, que comemora este ano uma década de lançamento. Para prestar nossas homenagens ao aniversariante, a Galinha Gamer embarcou em uma sangrenta jornada por manicômicos corredores a fim de destrinchar este que é um dos melhores e mais violentos jogos de horror já cometidos na história.

Eu poderia dizer que será uma leitura agradável, mas não quero mentir para você. Se tiver estômago fraco, afaste-se enquanto é tempo. Do contrário, acomode-se tanto quanto possível, aperte o cinto e me acompanhe – por sua conta e risco. 

Não diga que não avisei.

OUTLAST: SOBREVIVA

Se você acabou de acordar de um coma profundo e nunca ouviu falar em Outlast, aqui vai uma breve sinopse: você é Miles Upshur, o repórter investigativo mais dedicado e sem amor próprio que o jornalismo já conheceu. Ao receber uma denúncia anônima, Miles decide investigar sozinho um hospital psiquiátrico para criminosos insanos – no meio da noite, é claro, porque a notícia não dorme nem espera amanhecer. Assim, com uma câmera na mão e uma ideia (de merda) na cabeça, Miles precisará navegar pelo inferno enquanto tenta simultaneamente sobreviver e conquistar sua cobiçada primeira página.

Tenho muito com o que me relacionar em Outlast, a começar pela profissão – sou um jornalista enfrentando meus próprios medos para contar a história de um jornalista enfrentando seus próprios medos, ambos atrás de conteúdo para escrever nossa próxima matéria. Mas a familiaridade que sinto com o jogo se estende para além das coincidências profissionais, atravessando boa parte dos traumas infantis que precisei superar para me transformar no adulto (mais ou menos) mentalmente saudável que sou hoje.

Em Outlast, é impossível se defender. Armado apenas com sua câmera e um desejo suicida pelo Pulitzer, suas únicas opções são correr, se esconder ou (na falta de alternativas) morrer. O hospício onde o jogo se passa está repleto de pacientes batendo cabeça nas paredes ou salivando incongruências em camisas de força, mas também de maníacos psicopatas muito dispostos a perseguir você pelo cenário, loucos para infligir alguns furos de reportagem no protagonista. Os ambientes são mal iluminados e opressivos, muitas vezes lavados de sangue, evocando os temores mais primitivos do ser humano: o medo do escuro, do isolamento, da violência e, em última instância, da morte – os mesmos pavores que experimentei diversas vezes quando criança.

Muito do horror de Outlast está enraizado no mesmo tipo de conflito que me paralisou na infância, quando precisei escolher entre a luz acesa ou a porta aberta, a escuridão ou o exílio. As mecânicas dicotômicas do jogo funcionam sempre em oposição entre aquilo que o jogador deseja e o que precisa fazer para se manter vivo, brincando com nossa ansiedade. A visão noturna¹ da câmera, por exemplo, é necessária para enxergar no escuro, mas consome baterias que precisam ser encontradas pelo cenário. Quanto mais você procura, mais baterias consome. Mova-se depressa e seja detectado; mova-se devagar e fique no escuro.

O som em volume alto ajuda a rastrear os inimigos, mas o susto será maior quando eles pularem na sua frente. Vasculhar o cenário permite encontrar mais baterias; em contrapartida, aumenta as chances de encontros pouco amistosos. Até mesmo a forma com que o jogo sinaliza as direções é contraintuitiva, utilizando manchas de sangue para indicar o caminho. Não sei você, mas meu primeiro pensamento ao ver um rastro de sangue é seguir na direção oposta.

Não bastasse, somos o tempo todo induzidos a ficar tensos com a tensão do próprio protagonista: a respiração dele se altera e nossa respiração se altera com ele. Quando os inimigos se aproximam, é possível ouvir o coração de Miles batendo mais rápido (especialmente se você, assim como eu, for adepto dos fones de ouvido), intimando nosso coração a acompanhar o compasso. O medo do personagem é o mesmo que sentimos, gerando uma relação simbiótica entre jogo e jogador. Feliz ou infelizmente, poucas são as obras audiovisuais capazes de gerar tamanha aflição. Minha namorada que o diga: teve que trabalhar no quarto enquanto eu jogava na sala, desconcertada pelos meus gritos másculos de desespero.

Parte do que torna Outlast tão incômodo e assertivo é sua simplicidade mecânica e narrativa. Do momento em que entramos no hospital até o fim do jogo, o objetivo é um só: escapar. Existe uma explicação por trás dos acontecimentos e uma história relativamente bem desenvolvida, mas ela está longe de ser o foco de nossa atenção. A jogabilidade, por sua vez, resume-se a uns poucos movimentos e interações mínimas com o cenário, enquanto a maior parte do game é estruturada em torno de setpieces bastante contidas que funcionam quase como quebra-cabeças espaciais. O grosso de Outlast se resume a circular por corredores estreitos enquanto manobramos o personagem por um labirinto escuro, tentando evitar o contato direto com os inimigos – em muito lembrando uma versão em três dimensões de Pac-Man, apenas com um pouco mais de canibalismo.

Também a ambientação e a forma como os pacientes do manicômio são retratados prestam um grande serviço à capacidade de Outlast de instilar medo no jogador. Não existem bruxas, infectados ou criaturas sobrenaturais aqui. O que encontramos são seres humanos deformados física e psicologicamente, capazes das maiores barbaridades contra seus semelhantes, exatamente como acontece no mundo real. Isso torna os vilões altamente relacionáveis, pois a angústia que sentimos vem de nossa própria capacidade de reconhecer o mal em outras pessoas, principalmente naquelas mentalmente instáveis. 

E devo dizer que de pessoas mentalmente instáveis eu entendo.

MAMÃE

Minha mãe – a mesma do início deste texto – era uma pessoa desequilibrada. Desconfio que tivesse algum tipo de esquizofrenia paranoide, mas ela nunca deixou um médico chegar perto o suficiente para diagnosticá-la. O lance é que crescer na mesma casa em que mamãe foi uma aventura. Ela estava constantemente ameaçando se matar ou matar outras pessoas, incluindo o rebento que já fui um dia. Andar no mesmo carro que ela, por exemplo, era sempre garantia de fortes emoções: mamãe pilotava com uma mão e me estapeava com a outra, e durante longas viagens insistia em dizer que bateria o carro comigo dentro.

Ela achava que pessoas a perseguiam na rua, tinha uma religiosidade conflituosa e acreditava que minha presença preenchia a casa de energias malignas. Em mais de uma ocasião me acusou de compactuar com o demônio e em mais de uma ocasião me perseguiu pela casa com uma faca em punho – um dos motivos, imagino, pelos quais sou tão sensível a perseguições em jogos de horror, que para mim beiram o insuportável.

Outlast, não preciso dizer, é basicamente um pesadelo persecutório. Durante cinco ou seis horas, todo tipo de gente maluca nos persegue com lâminas ou porretes nas mãos, gritando obscenidades e ameaças que muito me recordaram de minha infância. A sensação de ser perseguido por corredores estreitos, sem qualquer possibilidade de defesa além de gritar e correr, me fez lembrar do exato tipo de medo que sentia quando estava sozinho em casa com mamãe, aos seis ou sete anos de idade, e acreditava piamente que não sobreviveria à violência incontida de uma pessoa muito maior e mais furiosa que eu.

De todas as demonstrações de insanidade presentes em Outlast, porém, sou afetado por uma em particular: a cena em que conhecemos Richard Tragger, um cirurgião seminu e batendo pino que nos amarra a uma cadeira de rodas antes de nos conduzir a um banheiro imundo, repleto de órgãos indecifráveis cobrindo o chão.

Acontece que um dos passatempos preferidos de mamãe era me deixar apavorado. Certa vez ela me convenceu de que chifres estavam nascendo na minha testa; em outra, disse que homens perigosos me levariam embora à noite. Mas nada me deixou tão assustado quanto o dia em que ela me trancou em um banheiro sujo que usávamos de despensa e anunciou, sem fazer grande caso, que voltaria em algumas horas para me arrancar um dedo. Para minha sorte ou azar, mamãe disse que eu poderia escolher o dedo que ela cortaria fora, e me orientou a escolher com sabedoria.

Pelo resto da tarde fiquei trancado naquele banheiro enquanto tentava decidir se precisava menos do anelar ou do mindinho da mão esquerda. No fim das contas, mamãe era doida, mas não burra, e me libertou do cativeiro pouco antes de papai chegar em casa. Assim que ela abriu a porta eu corri para o meu quarto, com todos os dez dedos que agora uso para digitar este texto, mas sinto que nunca consegui escapar completamente daquele banheiro.

Por isso, observar passivamente Miles se debatendo em Outlast enquanto o Doutor Tragger decepa dois de seus dedos com uma tesoura gigante causa em mim um enorme impacto – o que não me impede de reconhecer a genialidade da cena. A parte do corpo que mais vemos de nosso avatar nos games em primeira pessoa são as mãos, e a sacada da Red Barrels de amputar os dedos do protagonista é fantástica: pelo resto do jogo, somos obrigados a ver os cotocos sangrentos do que sobrou das mãos de Miles cortando a tela sempre que ele ergue os braços para se proteger ou se apoia em uma parede para investigar o caminho à frente.

O NOME DO JOGO

Outlast é um marco na história do horror: um jogo que continua sendo, dez anos após seu lançamento, uma das maiores conquistas já alcançadas no gênero – incluindo nessa comparação diferentes tipos de mídia. Ainda que tenha despertado memórias que eu preferia deixar enterradas em uma cova profunda, não nego que me diverti horrores enquanto jogava. Trata-se de uma experiência à qual todos os aficionados por histórias de terror deveriam se submeter pelo menos uma vez na vida (e talvez não muito mais que isso). 

Posso dizer que cumpri a tarefa autoinfligida de terminar Outlast como qualquer pessoa naturalmente sã faria em meu lugar: gritando e suando frio do começo ao fim. Mas me orgulho em dizer que não precisei de (muitas) fraldas. Tudo em nome do jornalismo, não é mesmo? Miles certamente concordaria comigo.

Se gostou desta matéria, peço que considere compartilhá-la com seus familiares, colegas de trabalho, amigos e inimigos, e quem sabe até mesmo compensar meu sofrimento com algum incentivo pecuniário em nossa humilde campanha no Apoia.se. Assim, poderemos trabalhar menos e nos dedicar mais ao que realmente importa: jogar e discutir obras de arte como Outlast, essa peróla vermelha dos videogames.

À parte toda a insanidade e violência que presenciamos cotidianamente em mundos reais e virtuais, a Galinha Gamer compromete-se a continuar trazendo conteúdo de qualidade para vocês, queridos leitores, daqui até o fim de nossos dias – e, cá entre nós, não temos nenhuma pressa.

Até lá, seguiremos tentando sobreviver um dia de cada vez, jogando o jogo da vida enquanto nenhuma faca encontrar nosso olho aberto.

 

 

 

 

¹ É curioso notar que o conceito da visão noturna foi a primeira coisa na qual os desenvolvedores pensaram ao projetar o jogo. Inicialmente, eles queriam usar algum tipo de soldado com visão noturna em seu equipamento, mas isso entraria em conflito com outro conceito que desejavam aplicar: a completa ausência de combate. Assim, optaram por usar a visão noturna sob a perspectiva de uma câmera, influenciados pela onda de filmes found footage da época. Mas quem manipularia a câmera? Para resolver a questão, a Red Barrels decidiu usar como protagonista um repórter, e logo depois foi decidido o cenário: um manicômio, ambiente pouco explorado nos videogames até então. Assim, toda a narrativa e ambientação se desenvolveram a partir de um único conceito: o medo da escuridão e a necessidade de se deslocar através dela. Essas e outras informações podem ser conferidas neste vídeo.

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