I did not buy this ticket: sobre luto e estradas escuras

Você também já sonhou que estava perdendo os dentes?

Como alguém que viajou de ônibus por centenas de quilômetros em paisagens noturnas e participou de mais funerais do que gostaria, tive muito com o que me relacionar jogando I did not by this ticket, uma visual novel de horror do estúdio brasileiro Time Galleon. No jogo, conhecemos e moldamos a história de Candelária, uma jovem que ganha a vida como carpideira, chorando no enterro de pessoas que não conhece e com as quais não se importa – o que ela chama de hobby ao conversar com um cliente no início do jogo. Entre uma cerimônia fúnebre e outra, a moça adormece em diferentes ônibus de viagem que a transportam madrugada adentro até seu próximo trabalho.

Certa noite, esperando na rodoviária, Candelária descobre consigo uma passagem que não se lembra de ter comprado. O número de seu acento é 00 e ela não reconhece o nome da empresa de viação impresso no bilhete: Eigengrau, uma referência à cor pálida e cinzenta que enxergamos ao fechar os olhos. Pouco depois, um ônibus diferente de qualquer outro é regurgitado pela noite e estaciona nas sombras aguardando nosso embarque. Sem escolha aparente, embarcamos. A partir de então, como a personagem de uma narrativa lynchiana, Candelária será conduzida – e nós com ela – por uma jornada repleta de coadjuvantes excêntricos, diálogos absurdos e flertes com o surrealismo.

ESTRADA PERDIDA

O leitor que já viajou de ônibus à noite certamente reconhecerá o cenário: você entrega seu bilhete ao motorista, sobe no veículo e caminha por um corredor escuro de poltronas até encontrar seu assento, depois se acomoda tão confortavelmente quanto possível e fica torcendo para que nenhum estranho – ou pelo menos ninguém estranho demais – sente-se na poltrona ao lado. Quando todos estão a bordo, o motorista se apresenta e deseja boa viagem, pedindo a todos que por favor se lembrem de usar o cinto de segurança. Ele se afasta enquanto você reclina a poltrona, tentando ajustar a altura certa para o conforto de suas costas. Um minuto depois, o silêncio dentro do ônibus – até então violado apenas por eventuais tosses e cochichos – é preenchido pelo ronco abafado do motor lá na frente. O motorista manobra o veículo para fora da rodoviária e ganha as ruas. A expectativa (ninguém sabe pelo quê) engrossa o ar dentro do ônibus, uma estranha e quase patética sensação de aventura que vai se dissipar assim que os portões da cidade ficarem para trás. Quando os pneus finalmente encontram a estrada, a primitiva ansiedade da qual os passageiros comungam dá lugar à letargia e aos bocejos preguiçosos, até enfim se transformar em um sono quebradiço. Pelas próximas horas, você e uma porção de desconhecidos estarão unidos pelo denominador comum desta viagem, partilhando os mistérios da noite que desfila em alta velocidade pela janela antes que você decida fechar a cortina.

A sensação de atravessar a noite em um ônibus de viagem é, para dizer o mínimo, peculiar. I did not buy this ticket não apenas replica a estranheza dessas viagens noturnas, a solidão esquisita que sentimos por trás dos faróis acesos em uma estrada escura, como dobra as apostas com uma cartada de drama familiar e horror psicológico. Nossa heroína, veja bem, é mais do que apenas uma chorona profissional.

Não demora para descobrirmos que Candelária está, ela mesma, vivenciando um processo de luto tardio – ou precoce, dependendo do ponto de vista. Experienciar o luto de desconhecidos serve igualmente como alívio e punição que inflige a si mesma na tentativa de trabalhar a própria dor. Como admite a certa altura, ela não faz o que faz por dinheiro, e sim porque gosta (ou antes porque precisa). Para sua sorte, diz Candelária, “todo lugar tem alguém morrendo”.

LÁGRIMAS DE ALUGUEL

Frequentei mais velórios do que gostaria nos últimos dez anos. Primeiro foi minha mãe, com quem eu tinha um relacionamento ruim. No ano seguinte foi a vez do meu tio, vítima de um ataque cardíaco enquanto escovava os dentes pela manhã. Uma colega de infância e amiga da família partiu em seguida, quando tinha apenas 27. Um ano depois foi o pai de meu pai, quando já tinha 91. Recentemente carreguei o caixão de minha avó materna, uma década depois de fazer o mesmo com o caixão de mamãe. Quase não consigo me lembrar de gente chorando nessas ocasiões, e percebi que nunca havia pensado nisso até jogar I did not buy this ticket.

Por que, socialmente falando, é tão importante chorar nossos mortos? O ofício de carpideira está em franco risco de extinção – ao menos se depender do contexto funerário brasileiro –, mas há registros tão antigos da profissão que ela é mencionada inclusive no Velho Testamento. Civilizações de milênios atrás, como a romana e a egípcia, também tinham suas carpideiras, mostrando que diferentes grupos sociais ao longo da história valorizaram a demonstração pública de tristeza por seus falecidos, mesmo que fosse uma tristeza de mentirinha. Enquanto jogava, comecei a pensar no que justificaria a baixa demanda atual por lágrimas de aluguel e soluços remunerados. Por que uma profissão historicamente validada está desaparecendo do mundo moderno?

Nos múltiplos velórios de que participei, quase ninguém – incluindo eu mesmo – estava chorando. A maior parte das pessoas se distrai conversando com parentes que não vê há muitos anos (talvez desde o último funeral), contando piadas e bebendo café na área de serviço da capela, ou sentada junto ao dono da festa para socializar com os vivos que se aglomeram ao redor. Mas pouca gente chora de verdade. Será que ficamos mais insensíveis com o passar dos séculos? Ou só deixamos de nos importar em parecer mais tristes do que realmente estamos? Talvez tenhamos internalizado a morte; talvez ninguém mais se lembre de como chorar.

Essa discussão também é levantada pelo jogo. Em dado momento, Candelária confessa a um passageiro que consegue derrubar lágrimas sem qualquer esforço; mas essa “habilidade” tem um revés: ela é incapaz de chorar honestamente. Seu pranto é sempre profuso, mas jamais sincero. Candelária nunca chorou pra valer, nem mesmo quando sua mãe faleceu, vítima de uma doença terminal. Esse evento, como era de se esperar, teve um impacto traumático na vida da personagem – com desdobramentos que dependem das escolhas do jogador –, gerando consequências emocionais e psicológicas que a perseguem até hoje.

Quando vemos o cobrador do ônibus rasgar o próprio rosto, expondo um globo ocular que gira no interior do buraco negro de sua face, não sabemos se aquilo está realmente acontecendo ou se Candelária é apenas uma vítima de si mesma, de sua confusão mental e do cansaço insone que a acomete – pois a linha Eigengrau não permite que os passageiros durmam durante a viagem. A dúvida permanece quando entramos na minúscula cabine que serve de banheiro dentro do ônibus e nos deparamos com nosso próprio reflexo. Cada vez há um rosto diferente refletido ali, e nenhum deles se parece com o rosto certo.

Candelária, assim como nós, desconhece a estranha geometria daquela face que a observa através do espelho. Seria somente um reflexo do caos interior que transborda da personagem? Ou estaria ela presa em uma dimensão sobrenatural, na qual o ônibus serve ao mesmo tempo como um transporte para alcançar a si mesma e como destino final em sua rotina cheia de destinos finais? Como em uma boa história de David Lynch, a resposta é tão simples ou complexa quanto for a imaginação de quem a interpreta.

I DID NOT BUY THIS TICKET: UM CONTO DE HORROR EXISTENCIAL

Assim como Candelária, tive um péssimo relacionamento com minha mãe. Passamos cinco anos distantes um do outro antes que ela fosse diagnosticada com um câncer em estágio avançado. Ela morreu um mês e meio depois. Assim como Candelária, não consegui colocar um ponto final nessa relação conturbada; não ouvi as desculpas que sempre esperei ouvir. Minha mãe se foi sem que tivéssemos uma conversa sincera um com o outro, sem que qualquer um de nós aceitasse fazer as pazes com o passado. Por isso, você pode imaginar como me senti particularmente tocado quando uma voz emergiu do banco de trás afirmando ser a mãe de Candelária, dizendo que havia retornado para seus últimos dois dedos de prosa.

Assim, quando escolhi opções de diálogo que faziam questão de passar a limpo a relação materna de Candelária, antes de decidir se me renderia ao falso idealismo de perdoar um fantasma, senti que era eu, Yohan, quem falava através da protagonista com minha própria mãe. Naquele momento, era eu quem estava sentado na poltrona desconfortável de um ônibus de viagem com o espírito de mamãe fungando no meu cangote, desesperada para conseguir um perdão que no fim das contas eu lhe neguei. Foi um dos momentos mais intensos e emocionalmente conflitantes que já tive em um videogame, o que não é pouco.

Sinto que a história de Candelária ressoará em mim por bastante tempo, especialmente quando navegar pela escuridão das estradas em vindouras viagens noturnas. Esse, imagino, é um dos maiores elogios que se pode fazer a uma obra de arte – a promessa de que nos lembraremos dela. E uma obra de arte é o que considero I did not buy this ticket. À parte os trunfos narrativos, a excelente escrita de Tiago Rech e a arte visual marcante de Lírio Ninotchka, o jogo também ganha pontos com nós, brasileiros, ao se apropriar de nomes típicos da língua portuguesa (como no caso do personagem Ivanildo Álvez ou da própria Candelária) e referenciar marcas tipicamente nacionais (cita-se a linha de ônibus Cometa, já integrante do imaginário popular como uma das mais insensatas escolhas de nome para uma empresa de viação¹).

Vale dizer que I did not buy this ticket é o jogo de estreia da Time Galleon (um primeiro passo com o pé direito, devo acrescentar), e foi o suficiente para me convencer a ficar de olho nos próximos lançamentos do estúdio. Além disso, um dos pilares da empresa, segundo consta em seu website, é “Cultivar o hábito da leitura por meio dos videogames” – justamente um de nossos objetivos aqui na Galinha Gamer. Mais um ponto para o pessoal da Time Galleon.

EU NÃO COMPREI ESTE BILHETE

Eventualmente consegui consertar meu rosto, enfrentei o passado e voltei para casa, deixando para trás aquele sonho alucinatório de rodovias escuras e noites mal dormidas. Na pele de Candelária, acredito que alcancei um desfecho satisfatório para minha história, mas há várias outras conclusões possíveis – aumentando a rejogabilidade para quem busca diferentes finais.

Depois de tudo o que passamos, sinto que Candelária e eu fizemos o melhor que podíamos para lidar com nossos traumas. No fim, desci daquele ônibus carregando pouco mais que minha própria alma e as roupas do corpo, mas foi o suficiente: encontrei paz de espírito ao retornar para minha família e confrontei emoções que precisavam ser confrontadas. No fim, logo antes de rolarem os créditos, fiz as pazes com o passado e aceitei o futuro. No fim, eu finalmente chorei de verdade.

 

 

 

 

¹ Não sei você, mas eu associo cometas a impactos repentinos, explosões e crateras fumegantes, o que de modo algum reflete minhas expectativas ao subir em um ônibus de viagem – motivo pelo qual prefiro viajar com as concorrentes de nomes amigáveis, como Princesa e Graciosa, mais alinhadas aos meus valores enquanto passageiro.

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