A Memoir Blue: ela que o abismo viu ou a epopeia de Miriam

De Gilgamesh aos monitores de alta resolução.

Escrito há mais de quatro mil anos em tabletes de argila, A Epopeia de Gilgamesh é um épico sumério que pode muito bem ser o poema mais antigo do mundo. Originalmente intitulado Ele que o abismo viu¹, o texto narra a jornada de autoaprendizado de um rei que, entre outras peripécias, aventura-se em busca da imortalidade.

Em mais de uma ocasião a simbologia da água se faz presente na narrativa. Há duas cenas especialmente marcantes: primeiro, quando Gilgamesh aprende sobre um terrível dilúvio que teria inundado a Terra e ao qual somente um homem e sua família, enclausurados em uma embarcação, teriam sobrevivido – ideia reaproveitada dois mil anos depois para contar a saga de Noé. Já em um segundo momento, buscando a imortalidade, o protagonista amarra pedras aos próprios pés e se deixa afundar nas águas de um canal a fim de surrupiar a “planta da juventude”, capaz de lhe restituir a mocidade.

É interessante notar que, simbolicamente, a água surge na Epopeia como uma representação tanto da vida quanto da morte: ora para destruir, manifestando-se com brutalidade em um dilúvio apocalíptico; ora para restituir, ao encerrar no leito do rio a promessa de vida eterna.

Muita coisa mudou na poesia ao longo dos últimos 40 séculos. Deixamos de nos importar com a métrica, propusemos experiências concretas e admitimos a elasticidade do próprio conceito de poesia. Hoje sabemos que até mesmo videogames podem ser poesia. Isso mesmo, videogames. Por mais pretensiosa que essa afirmação pareça em um primeiro momento, garanto ao bom leitor que não é leviana. Foi a lição que aprendi ontem mesmo, enquanto jogava A Memoir Blue, um indie que se autodefine como um “poema interativo” – duas palavras que eu nunca tinha visto juntas até então.

Assim, se temos em um extremo cronológico as tábuas de Gilgamesh, contendo o que talvez seja o primeiro grande poema da humanidade, no extremo oposto encontramos o poema-jogo da Cloisters Interactive, lançado em 2022, ápice de milhares de anos de desenvolvimento intelectual, poético e tecnológico – um tour de force da décima arte que, a despeito da boa intenção teórica, funciona ainda melhor na prática.

Pois é. Entre as tábuas de argila e os monitores de alta resolução, realmente muita coisa mudou na poesia ao longo dos últimos 40 séculos. A água, entretanto, segue tão representativa dos medos e anseios da intimidade humana quanto na antiga Suméria.

VINTE MIL LEMBRANÇAS SUBMARINAS

Em A Memoir Blue, acompanhamos a história da nadadora profissional Miriam – seu nome nunca é citado diretamente dentro do jogo, mas a própria desenvolvedora se refere à personagem dessa forma. Miriam acabou de ganhar uma medalha olímpica, prova máxima de sua competência física e profissional. Mas logo fica claro que ela não está feliz.

De volta a seu apartamento, repleto de troféus e medalhas com os quais parece não se importar, Miriam se deixa cair no sofá e ali permanece, solitária e envolta em pensamentos nebulosos. O celular toca dentro da bolsa. Ela reconhece o nome no visor do aparelho, mas se recusa a atender. Hoje (e talvez apenas hoje), Miriam prefere ficar sozinha com seus sentimentos. À medida que a noite cai, a protagonista submerge em lembranças distantes, levando-nos com ela em uma viagem submarina pelas fendas de seu passado.

Misto de sonho e licença poética, A Memoir Blue é uma viagem pelas memórias de infância e adolescência de Miriam, criada sozinha pela mãe após um dramático rompimento familiar. Segundo Shelley Chen, diretora da Cloisters Interactive, a narrativa foi inspirada em episódios de sua própria vida, especialmente na viagem que fez com a mãe após a separação dos pais.

Durante o jogo, acompanhamos a trajetória de Miriam por ambientes familiares que evocam nela as lembranças da mãe: uma viagem de trem, um passeio de barco; mais tarde, o pequeno apartamento que dividiram e onde mal cabiam sentadas em uma única cadeira na sala. Todos esses cenários, porém, estão debaixo d’água: seja para representar o afogamento de Miriam em seus próprios traumas mal resolvidos, seja para simbolizar a sensação familiar que a água lhe proporciona – afinal, estamos falando de uma nadadora olímpica, mais do que acostumada a estar submersa.

Assim como na jornada de Gilgamesh, a água se apresenta como um elemento essencial à condução narrativa, servindo para expressar, a depender do momento, opressão ou conforto; tristeza ou libertação; dor ou esperança.

A EPOPEIA DE MIRIAM

A história de Miriam é a história de uma pessoa incompleta. De alguém que, apesar do grande sucesso profissional (ou justamente por causa dele), sente-se isolada de um mundo que a observa tão somente pelas lentes fotográficas das câmeras, disparando flashes contra seu rosto para estampá-lo nos jornais do dia seguinte. É também a história de uma filha ressentida pela distância que o trabalho de sua mãe colocou entre elas.

De que adiantam o alto grau de aperfeiçoamento técnico, os troféus e as medalhas, pergunta-nos o jogo, se quem mais nos importa não estiver lá para compartilhar essas vitórias? Isso porque a mãe de Miriam, preocupada com o sustento da família, está frequentemente colocando suas responsabilidades profissionais à frente da relação materna: precisa sair às pressas da premiação da filha ou chega apenas quando o pódio já está sendo desmontado. Ao longo dos anos, as medalhas de ouro que Miriam acumula começam a parecer exatamente o que são: pedaços de metal incapazes de lhe dar o afeto de que tanto precisa. Troféus, por mais brilhantes que sejam, não podem abraçá-la.

Tal qual o protagonista da epopeia suméria, Miriam desce ao fundo do mar na esperança de salvar a si mesma. Mas, em vez de pedras atadas às pernas, usa uma escada rolante para chegar ao fundo do oceano, em uma cena que faz o possível para nos lembrar do caráter onírico do jogo. Lá embaixo, mil metros metafóricos abaixo da linha do mar, a personagem se descobre rodeada de animais marinhos e sentimentos diversos: tristeza, saudade, alegria. Depara-se consigo mesma e com a criança que já foi um dia; com as recordações boas e ruins que detém de si, e afunda cada vez mais dentro de seu sonho-lembrança na tentativa de fazer as pazes com o passado, com a mãe, consigo mesma.

Para diferenciar passado e presente, as memórias de Miriam são ilustradas em uma fantástica arte 2D (como nas recordações em que aparece ainda criança interagindo com a mãe), enquanto o cenário e a Miriam adulta são renderizados em três dimensões – sendo digna de nota a fluência estética que assume a combinação de ambas as versões quando misturadas na mesma cena.

Assim como Gilgamesh, Miriam mergulha em águas profundas em busca de uma solução para o que lhe atormenta. Mas, se na epopeia suméria era a finitude da vida que atormentava o rei de Uruk, aqui é uma relação ferida e ainda não cicatrizada com a mãe que aflige nossa heroína. Se Gilgamesh tinha uma missão de importância vital, capaz de impedir a ação da morte sobre a humanidade, a protagonista de A Memoir Blue desce às profundezas para encontrar nada além de si mesma; para enfrentar nenhum outro medo que não o seu próprio – o medo de nunca ser boa o suficiente para merecer amor incondicional; de nunca ser a coisa mais importante na vida de alguém. Esta é a epopeia de Miriam: uma breve incursão a um turbulento mar de águas passadas.

Em tudo semelhantes, mas em tudo diferentes, A Epopeia de Gilgamesh e A Memoir Blue são poemas diametralmente opostos também em sua extensão: mais de três mil versos foram inscritos nas tábuas de argila que contam a história do rei sumério; menos de 60 minutos é o tempo necessário para concluir a história de Miriam – ou, melhor dizendo, para chegar ao fim do breve recorte pelo qual nos é permitido conhecer um pouco dessa personagem, e sem o qual nos resta apenas especular sobre seu futuro longe de nossos olhos, tão logo rolarem os créditos.

UM DELEITE PARA OS SENTIDOS

Mas o que faz de A Memoir Blue um videogame?, pergunta o leitor hipotético. E mais importante: O que faz dele um poema? A primeira resposta é das duas a mais simples: apesar de ser um game totalmente focado em narrativa – quase um walking simulator, mas sem a parte da caminhada –, A Memoir Blue permite ao jogador acionar pequenos mecanismos e movimentar objetos que fazem avançar a narrativa. A participação do jogador é singela, mas satisfatória. Seja arrastando o Sol para encerrar o dia e invocar a noite, seja para propelir Miriam ao longo de uma piscina durante um treino de natação, o comando do jogador é constantemente solicitado para que a história possa seguir em frente – uma das exigências para se classificar um videogame como tal.

Já a segunda resposta dependerá das diferentes concepções que podemos ter sobre o conceito de poesia. Mais do que o formato que se atribui a ele, acredito que um poema seja primordialmente definido por sua capacidade de provocar emoções e nos convidar a fazer múltiplas leituras de seu conteúdo. A Memoir Blue, nesse sentido, é um perfeito exemplo de poesia, ainda que pouco (ou nada) tradicional. Mas, para saber se funciona como poema para você, somente jogando – o que recomendo efusivamente.

Quando ambas as propostas do jogo funcionam em harmonia – a parte videogame e a parte poesia –, A Memoir Blue é um deleite para os sentidos. Destaco aqui a cena em que Miriam, sentada na borda de um precipício (lembrando o titular abismo de certa epopeia), vê surgir do fundo do mar um desfile de águas-vivas que se movem desapressadas. Ao clicar sobre elas, o jogador é recompensado com notas musicais que compõem uma melodia agradável à medida que as águas-vivas circundam Miriam e seguem seu caminho mar cima, antes que a personagem se lance ao abismo para prosseguir em sua jornada.

Falando em música, a trilha sonora de A Memoir Blue é memorável, e você pode ouvi-la aqui ou aqui enquanto me acompanha até o fim deste artigo. Equipe-se com o melhor par de fones que encontrar e aperte o play. Vai lá, eu espero. Pronto? Continuemos, pois.

As faixas são ligeiramente melancólicas e carregam um pouco daquelas good vibes intimistas que não nos permitem saber com clareza se estamos ficando um pouquinho tristes ou um pouquinho felizes ao escutá-las. Se estiver ouvindo a primeira música da lista, I’m there too, já sabe do que estou falando.

Nem todas as músicas são cantadas; a maioria é instrumental. Porém, as duas ou três canções escritas exclusivamente para o jogo fazem maravilhas ao expressar sentimentos nem sempre comunicados pela protagonista, mas que refletem bem o contexto da situação que vemos em tela. Isso é especialmente significativo porque, veja só, A Memoir Blue é uma obra que se exime de qualquer comunicação verbal. Não existem falas ou palavras escritas em nenhum momento do jogo, e toda a história é contada visualmente – outra característica que polariza, de um lado, o poema mais antigo do mundo, e de outro o que me parece um exercício poético verdadeiramente incrível: um poema sem palavras.

A MEMOIR BLUE: UMA LEMBRANÇA MELANCÓLICA

E sem palavras estou eu, agora que terminei minha aventura com Miriam. Deixei os créditos rolarem até o fim para aproveitar a última música do jogo, mas não pude evitar de me sentir estranhamente solitário ao retirar os fones e desligar o computador. Depois do espetáculo audiovisual de A Memoir Blue, depois de acompanhar Miriam em sua taciturna descida às profundezas de si, precisei de uma boa meia hora para despressurizar e emergir outra vez na superfície de minha própria realidade.

No desfecho do conto milenar, Gilgamesh perde a planta da juventude logo após saqueá-la do fundo do rio, vendo-se obrigado a finalmente aceitar a própria mortalidade. Já Miriam, pela interpretação que fiz da narrativa, saiu-se um pouco melhor: foi capaz de reafirmar o gigantesco amor que tinha pela mãe e perdoá-la por erros que, antes de mais nada, faziam dela um ser humano com defeitos e qualidades como todos nós.

Quanto a mim, sigo ora submerso no fundo de meus oceanos particulares, ora boiando sobre a água com o Sol a pino acima de mim, tentando – ainda que nem sempre conseguindo – alcançar o mesmo equilíbrio de que falam os poemas².

 

 

 

 

¹ Alguém mais pensou em Nietzsche?

² E já que falamos em poemas, despeço-me com este, que rabisquei durante uma recente viagem noturna de ônibus e que, pela coincidência temática, não pude deixar de associar ao jogo-poema de que tratamos aqui:

 

eu vou para o fundo do mar

nadar mil metros para dentro de mim

aonde nem os peixes ousam chegar

e vou respirar, enfim

 

eu vou para o fundo do mar

para as mais abissais profundezas

aonde desce o tubarão chorar

pela morte de suas presas

 

eu vou para o fundo do mar

devolver este coração ao abismo

da fossa escura fazer meu lar

e me afogar neste falso lirismo

 

eu vou para o fundo do mar

comandar a esquadra de meu naufrágio

e quando ouvir a sereia cantar

abraçarei a morte como um bom presságio

 

eu vou para o fundo do mar

buscar a sombra de um cachalote antigo

e sua fome ancestral aplacar

usando seu ventre como derradeiro abrigo

 

eu vou para o fundo do mar

onde descansam monstros de oito braços

que incapazes de se fazer amar

só encontram amor em seu próprio abraço

 

eu vou para o fundo do mar

nadar mil metros para longe de mim

eu vou para o fundo do mar

onde o oceano encontrará meu fim

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