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No glorioso calhamaço Graça Infinita, o escritor David Foster Wallace conta a história de um filme tão divertido que aprisiona a audiência em frente à TV. Mesmerizados em um looping diante da tela, os espectadores perdem qualquer interesse além de continuar assistindo indefinidamente ao filme – mesmo que morram no processo. Em suas mais de mil páginas, o livro de Wallace fala muito sobre muitas coisas, mas o vício em entretenimento de massa e seus predicados é um tema que amarra todos os outros. A própria estrutura cíclica do livro incentiva o leitor a, em um prodigioso artifício metalinguístico, retornar para o início da obra ao fim da leitura, emulando o destino das pessoas hipnotizadas pelo ciclo eterno de exibição e reprise do filme-título.

Há muito de familiar entre o tijolão de Wallace e SUPERHOT, jogo polonês nascido de uma game jam e alimentado por um bem-sucedido financiamento coletivo no Kickstarter. Menos despretensioso do que possa parecer em um primeiro momento, SUPERHOT subverte as expectativas de um FPS tradicional para nos mostrar um espelho no qual se reflete o espírito pálido dos jogadores. Assim como Graça Infinita tece comentários autoconscientes sobre a indústria do entretenimento, provocando o leitor a reconhecer a armadilha implícita no próprio ato de se divertir com a leitura do livro, SUPERHOT nos pergunta até onde se estende nossa real agência dentro dos videogames, depois ri de nós por acreditarmos ter alguma.

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A premissa ao redor da qual se organizam as mecânicas de SUPERHOT é simples, mas criativa: o tempo se move apenas quando você se move. Dessa ideia básica derivam todas as fases do jogo, divididas em cenários e confrontos aparentemente desconexos – uma briga de bar, um prédio em construção, um beco isolado. O objetivo é sempre o mesmo: abater os inimigos sem ser atingido. Enquanto estiver parado, o tempo avança em câmera lenta, permitindo ler a trajetória de cada projétil que risca o ar em direção a sua cabeça.

A lenta passagem do tempo permite fazer escolhas com relativa tranquilidade: para onde se esquivar agora, quais inimigos derrubar primeiro, que parede usar como cobertura. Mas, assim que nos movimentamos, o tempo volta ao normal, com balas voando a velocidades normais. É uma dinâmica que por si só dialoga contra o padrão dos jogos de tiro. Enquanto a maioria dos FPS exige movimento rápido para se manter vivo, SUPERHOT incentiva o jogador a estudar o ambiente e decodificar a melhor forma de vencer o combate, seguindo a lógica de um quebra-cabeça – bullet-time puzzler é o termo usado pelo inconfundível SUPERHOT Team para definir sua criação.

Não há bem uma narrativa aqui. Você é um personagem qualquer (menos que isso: um boneco de testes) cujo único propósito é enfrentar e vencer inimigos grosseiramente entalhados no que parece rubi. O mais perto que temos de um enredo nessas seções se resume às ordens que o jogo oferece: atire, bata, desvie. Corra, sobreviva, obedeça. É o desafio pelo desafio.

Há, por outro lado, uma vertiginosa metanarrativa que confere a SUPERHOT a complexidade que lhe falta em termos mecânicos. Parte do jogo (a parte mais interessante) se passa dentro do piOS, o “Sistema Operacional em Disco do Futuro”, cuja interface gráfica é ironicamente defasada. Utilizando o piOS, podemos navegar por um computador de mentirinha como se fosse nosso próprio computador de verdade – a tela dentro da tela.

Logo de início, assim que rodamos o jogo pela primeira vez, uma mensagem chega até nós por meio do guruCHAT, um programa de bate-papo dentro do piOS. A pessoa (presumivelmente amiga) nos pergunta se já estamos jogando SUPERHOT, o game mais quente do momento. Na hora de responder, o jogo nos pede para digitar a resposta – nós, jogadores reais, em nossos teclados e joysticks reais. Mas aquilo que digitamos não corresponde ao que aparece na tela – àquilo que o metajogador dentro do jogo realmente está digitando. Independentemente do que escrevermos, a mensagem enviada será a mesma. É o primeiro alerta do jogo: você não está no controle. 

Do outro lado da tela, a pessoa com quem conversamos nos encaminha os arquivos do jogo, que são baixados e instalados automaticamente no desktop diegético do piOS, pelo qual podemos navegar livremente. Basta clicar em “superhot.exe” para rodar o jogo propriamente dito – o combate em câmera lenta barra tempo real contra sujeitos vermelhos.

É uma beleza estilhaçar os inimigos. Seus corpos explodem em fragmentos coloridos que ajudam a relativizar a brancura monótona dos cenários. Em câmera lenta-rápida-lenta, a cabeça dos bonecos se desmancha ao encontrar as balas que encaminho em sua direção. Esmagados pela violência brutal de execuções corpo a corpo, os sujeitos vermelhos caem um após o outro em poças pixeladas de sangue fresco. Seriam imagens fortes, não fosse a ubíqua sensação de sermos todos corpos inorgânicos esculpidos em vidro.

Há algo de viciante na enganosa simplicidade técnica do combate em SUPERHOT. É preciso entender o cenário e planejar cada passo para sobreviver: calcule a velocidade das balas, antecipe a movimentação inimiga e use o tempo a seu favor. Não tenha pressa. Encontre uma brecha entre os atacantes, depois atire e os veja morrer. Três fases depois, eu estava fisgado. Não queria parar de jogar.

Foi quando as coisas começaram a ficar estranhas.

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Ao fim da terceira fase, o jogo fechou sozinho, reenviando-me à tela do piOS – o computador dentro do computador. Uma nova conversa se desenrolou pelo guruCHAT. Mais uma vez era eu quem digitava, mas as respostas na tela não eram minhas. Meu suposto amigo me orientou a baixar uma atualização que permitiria jogar novas fases. Baixei a atualização em meu PC dentro do PC e cliquei novamente em “superhot.exe”. Cinco minutos depois, eu estava de volta ao jogo.

Por não sei quanto tempo continuei despedaçando homens de vidro. Com garrafas, espadas, armas de fogo, meus próprios punhos e (em certa ocasião) bolas de sinuca, abri meu caminho por um exército sanguíneo – e aproveitei cada segundo. Eu estava começando a pegar o jeito, dava pra ver. Estava ficando bom naquilo. E justamente quando comecei a ficar bom naquilo o jogo travou novamente, exigindo uma senha de acesso que não me podia ser menos desconhecida. Fui mais uma vez expulso do jogo e realocado na tela do piOS. Mais uma vez levado à sala de bate-papo do guruCHAT. Filho duma, pensei. O diabo do jogo não quer ser jogado. E bem quando eu estava me divertindo…

No chat, meu amigo virtual perguntou o que eu estava achando de superhot.exe. Digitei em meu teclado de verdade: “O maldito não me deixa jogar”, mas a tela do piOS registrou: “É meio aleatório. Sem história, sem nada, só matando caras vermelhos” – um aceno dos desenvolvedores para nós, seres de carne e osso, por intermédio desse metajogador que tece (ou acredita tecer) seus próprios comentários sobre o jogo no ambiente do piOS, mas que ao mesmo tempo tece justamente o tipo de comentário que se esperaria de um jogador real. E lá se vai a quarta parede.

Eventualmente a conversa no chat se encerra (ao menos por ora) e somos habilitados a novamente rodar o game. Mas a questão é que superhot.exe – o jogo dentro do jogo – não quer deixar você jogá-lo. A cada punhado de fases o jogador será de novo e outra vez transplantado para a tela inicial a fim de avançar esse metaenredo que serve de background à parte “matando caras vermelhos” da coisa. Por mais interessantes que sejam, esses bolsões narrativos tiram por vários minutos o controle das mãos do jogador, forçando-o a parar de jogar. Parece chato? Parece. Mas, longe de ser um problema, essa é uma ideia pra lá de genial.

Acontece que SUPERHOT sabe que você deseja jogá-lo. Sabe que quer continuar matando caras vermelhos. E também sabe que repetidamente remover o controle de suas mãos é uma forma de aumentar esse desejo – queremos aquilo que não podemos ter. Em certo ponto, o jogo chega mesmo a pedir que nunca mais rodemos o executável de SUPERHOT, e pouco depois nos obriga a fechar o programa, despejando-nos em nosso desktop de verdade.

Essa dinâmica se entrelaça em mais de um aspecto com a estrutura fractal de Graça Infinita, um livro que está sempre balançando cenouras narrativas diante do leitor sem nunca permitir apanhá-las de fato. Na obra de Wallace, dezenas de tramas e personagens se entrelaçam para formar uma rede de perguntas que movimentam o leitor atrás de respostas. Na prática, isso significa que o autor está sempre oferecendo novas informações que podem ou não levar a algum lugar, mas também escondendo o jogo para que você, leitor, queira continuar avançando as páginas. SUPERHOT se utiliza da mesma metodologia ao oferecer uma experiência mecanicamente viciante com uma mão enquanto, com a outra, remove o controle sempre que você começa a se divertir demais.

Esse ciclo de interesse/desejo versus falta/necessidade é amplamente trabalhado em Graça Infinita, especialmente quando se debatem as diferentes encarnações do vício: seja em drogas, sexo ou televisão. SUPERHOT também se apodera do mote do vício, mas para navegar outras águas: é um jogo sobre o vício em jogos.

Vale notar, ainda, que ambos os trabalhos se utilizam de certos fenômenos culturais para criticar os mesmos fenômenos culturais de que se apropriam – no livro, o entretenimento de massa; em SUPERHOT, os videogames. A semelhança temática e retórica não é coincidência: Scott Alexander, um dos roteiristas do jogo, citou a influência do livro de Wallace na construção de SUPERHOT, e há muito mais a se encontrar de Graça Infinita no jogo se você souber para onde olhar.

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A partir de determinado ponto da campanha, é possível observar um claro vazamento da metanarrativa de SUPERHOT (aquela que travamos pela interface do piOS) para dentro do executável superhot.exe. Se as primeiras ordens que recebíamos eram tão inócuas quanto “Pegue a arma” ou “Pule por cima do carro”, da metade para a frente do jogo elas se tornam irônicas e descabidas, quase sádicas, como se o próprio sistema estivesse abertamente tentando nos sacanear. “Quando você vai aprender?”, o jogo pergunta. Depois, em letras garrafais, avisa-nos do óbvio: “Você não está no controle”.

Em dado momento, o jogo me trancou em uma cela branca e me pediu para caminhar. Andei em círculos até que uma nova instrução me dissesse para ficar parado. Fiquei parado. “Bom menino”, piscou uma mensagem na tela. Era o jogo rolando de rir da minha obediência cega. Minutos depois, após uma nova bateria de puzzle-shooting, acabei trancafiado outra vez na mesma cela. Agora, porém, sujeitos vermelhos disparavam contra mim através das grades. Eu estava desarmado e, portanto, indefeso. “Dance”, ordenou a mensagem na tela. Sem escolha, dancei. “Agora morra”, disse o jogo. Sem escolha, morri.

Gostamos de nos iludir com a ideia de controle. De que, ao jogar um videogame, temos agência sobre mundos inteiros – tanto maior o mundo, maior a ilusão. SUPERHOT nos estapeia com a verdade: em diferentes escalas, estamos apenas fazendo aquilo que nos dizem para fazer. Vá até o ponto X. Traga o item Y. Salve o mundo.

Assim como outras formas de arte, os jogos eletrônicos dependem de um conjunto bem amarrado de normas e regras que devem ser respeitadas para garantir a fluidez da tripla interação entre público, criação e criador. Jogar videogames significa obedecer a comandos, explícitos ou não. Mate o monstro. Ganhe a corrida. Encontre a princesa. Elogiamos um jogo de mundo aberto quando ele nos oferece liberdade. Caminhos. Opções. Mas o fato é que essa mesma liberdade acaba no momento em que aceitamos interagir com aquele mundo dentro de seus próprios termos, seguindo suas próprias regras. Só chegaremos tão longe quanto permitir o mapa.

Há uma dura verdade que muitos jogos tentam esconder, mas que SUPERHOT faz questão de pendurar no pescoço: como quase tudo na vida, o controle que temos em videogames não passa de um delírio consciente – um delírio que jogo e jogador buscam alimentar ativamente.

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A falta de controle, por fim, alcança também o metajogador – o sujeito em frente à tela do piOS, esmagado entre minha realidade e a realidade do jogo. Após outro incidente que nos impede de continuar rodando superhot.exe, voltamos ao guruCHAT. Mas agora é o metajogador quem tem suas mensagens distorcidas pelo sistema. “Não consigo me controlar. Não estou nem digitando essas palavras”, ele escreve. Mas a janela da conversa registra apenas: “SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT”.

Bum: outra vez a quarta parede derrubada a marretadas. Grandes blocos textuais de “SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT” cobrem a tela à medida que tanto eu quanto o metajogador tentamos sem sucesso escrever com nossas próprias palavras; enquanto tentamos expressar nossa individualidade. A mensagem é clara: SUPER HOT não é apenas o nome do jogo, mas um tipo de mantra que serve ao mesmo tempo para nos censurar e lembrar de que não estamos no controle – jamais estivemos, jamais estaremos.

Agora eu e o metajogador somos praticamente um, abraçados pelo mesmo sistema eletrônico corruptível que quer e não quer permitir nosso avanço, que quer e não quer nos deixar SUPER HOT. Não sem muito custo, rodamos pela última vez o executável do programa e nos lançamos em direção ao desafio final. Ondas de sujeitos vermelhos se quebram contra a rocha que nos tornamos. Somos imortais. Somos invencíveis. Em perfeita sincronia, lutamos até não restar inimigo de pé.

Sem mais fases. Sem mais objetivos. O que sobrou de SUPER HOT apenas uma casca vazia, um martelo sem um prego para martelar. Da tela preta do pós-jogo surge uma mensagem: “Você ainda está fraco. Você deve se libertar”.

A derradeira missão: invadir meu próprio apartamento e SUPER HOT comigo mesmo. “Corpos são descartáveis”, diz o jogo. “Você precisa se libertar”. Vejo meu corpo anguloso sentado em uma cadeira no quarto, jogando SUPER HOT em frente ao monitor. Na tela do computador eu apareço exatamente aqui onde estou, apontando uma arma para mim mesmo enquanto me observo apontar uma arma para mim mesmo.

O controle não passa de ilusão. Guerra é paz, liberdade é SUPER HOT. Movimento o mouse para alinhar a mira da pistola contra a cabeça do metajogador que represento, tentando ficar alheio ao fato de ser minha própria cabeça. Basta um último SUPER HOT para acabar com tudo – com o jogo, com a diversão, comigo mesmo. 

Sem que eu tente realmente impedir, a arma dispara com um clique suave. Sinto um golpe em minha SUPER HOT e tudo fica vermelho, depois escuro. Agora eu, o metajogador e o sistema somos um único código binário trafegando pela rede. Desmorona assim a última barreira entre a metaexistência e a realidade, e na vastidão SUPER HOT de uma morte digital eu reflito sobre as palavras finais de SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER HOT SUPER// <erro> reiniciando em 5… 4…

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